sábado, 9 de julho de 2011

A verdade e os dois relativismos: o filosófico e o burro

“Contra fatos não há argumentos”. No livro Convite à Filosofia, Marilena Chaui é muito feliz ao esclarecer que a filosofia se ocupa também com os pressupostos. O que está pressuposto na frase que inicia esse texto? Está pressuposto que fatos existem, que esses são uma manifestação da realidade, verdadeira, são evidentes por si mesmo e, portanto, sobrevivem a qualquer argumentação. O que a filosofia se pergunta aí, levando em consideração as noções de realidade, verdade e sujeito, é: será que os fatos são tão evidentes assim? Os fatos são “mais verdadeiros” por quê? Como podemos chamar um fenômeno de fato? Se todo fato se apresenta a um sujeito como objeto, então todo fato precisa ser interpretado, precisa de um sentido que lhe seja atribuído pelo sujeito e, portanto, não pode ser tão evidente quanto parece.

Tal ideia, dos fatos como manifestação da Verdade (com v maiúsculo), de certa forma, é um resquício do positivismo, pensamento para o qual a ciência, em sua dimensão empírica, apontaria a verdade através dos fatos observáveis. Começamos a perceber com melhor clareza essa perda de força da evidência dos fatos, como também o esfacelamento da verdade absoluta e única, com o advento da "pós-modernidade". Nietzsche, Marx e Freud acabaram por nos fazer perceber que tanto a noção de verdade, como de sujeito, iluminista, podiam ser bem questionadas e tais questionamentos se popularizaram no século passado. A partir daí, descemos do pedestal humanista e levantamos faixas e cartazes contra as verdades irrevogáveis, até mesmo da própria ciência e filosofia. Viramos amigos do relativismo filosófico afirmando que a verdade é verdade de um ponto-de-vista. Todavia, principalmente no senso comum, nos perdemos no meio do caminho. Começamos a dizer que a “verdade é relativa” ou “subjetiva” querendo dizer que cada um tem a sua verdade e pronto. Começamos a acreditar que as discussões não valem a pena, pois cada um “deve respeitar a verdade do outro”. No final das contas, o que deveria ser a nossa salvação de mais um mito a respeito da verdade, nos levou a outro mito e, no frigir dos ovos, nos tornou burros.

Duas pessoas começam a discutir política e, aí, uma delas diz: “Eu tenho minha opinião, você tem a sua, então respeite a minha que eu respeito a sua”. Uma terceira pessoa se intromete na discussão dizendo: “Religião, futebol e política não se discute”. O que todas essas pessoas estão dizendo é que não adianta ficar debatendo porque cada um tem a sua verdade, cada um acredita numa coisa e pronto.  Ora, é bem provável que todas essas pessoas estejam, nessa discussão, sendo burras. O que acontece no caso da “religião, futebol e política” é que, pelo fanatismo, muita gente é incapaz de sequer ouvir a argumentação do outro, se fixando em sua posição antes mesmo de qualquer debate e, por isso mesmo, reproduzindo a burrice. Pior do que isso, se utilizam, como o terceiro burro, de um relativismo rasteiro para terminar a discussão, dizendo que cada um tem a sua verdade e, por isso, não adianta discutir. Ora, não adianta debater com a burrice em qualquer tema, independente se é religião, política ou qualquer outra coisa. Com inteligência, se discute qualquer coisa. A filosofia sabe disso.

Há ainda dois outros exemplos do cotidiano que mostram como temos utilizado o "relativismo" para justificar nossa burrice. Uma delas é quando o aluno escreve uma resposta errada na prova e o professor lhe tira a nota. Aí o aluno diz que é uma questão de interpretação. O aluno argumenta que da perspectiva dele é daquele jeito e, portanto, não está errado. Além disso, circula no nosso cotidiano o discurso “mente aberta”. Com a ideia de que não existe uma verdade metafísica (única e absoluta), algumas pessoas acreditam que o certo é abrir a mente para tudo, até mesmo para a burrice. Mas, como diria o comediante cético: “Se você abrir muito a sua mente, seu cérebro pode cair”.

Afinal de contas, o que há de errado com os que acham que não adianta discutir política, com o aluno que justifica o seu erro falando de interpretação e com a pessoa que abre demais a mente dela? Essas pessoas entenderam a crítica pós-moderna de que não existe verdade metafísica, porém, não entenderam o relativismo filosófico, nem mesmo o perspectivismo de Nietzsche, que é mais próximo do relativismo do que da metafísica platônica. Nem mesmo aqueles que falam "mas aí vai cair no relativismo" entenderam também. Elas acham que como não existe verdade metafísica, então, a verdade é relativa a cada um e aí acabou. Não é somente assim que o relativismo filosófico pode ser compreendido. A filosofia contemporânea, de Nietzsche ao neopragmatismo, é perspectivista e, por isso mesmo, amiga de Protágoras; portanto, entende que a verdade é "relativa", é verdade segundo uma perspectiva. Todavia, a verdade não é relativa do tipo subjetiva, mas sim relativa a critérios e, sendo perspectivistas, entendem que há um critério maior no qual podemos avaliar as verdades. A filosofia contemporânea pode ler Protágoras da seguinte maneira: “O homem é a medida de todas as coisas”. O homem, ali, não é cada um dos homens, mas sim todos os homens. Nós, os homens, com nossa linguagem, com nossa comunicação e consenso, estabelecemos os critérios, os pressupostos.

Nietzsche concebia a verdade como um conjunto de metáforas desgastadas. “Tudo é interpretação”, escreveu Nietzsche, mas, no perspectivismo, diferentemente do que alguns concebem como relativismo, onde todas as interpretações tem o mesmo valor, a melhor interpretação é dada pela vontade de potência (Nietzsche) ou no âmbito da prática (pragmatismo). Há uma ótima exposição sobre isso aqui.

Por isso é possível se discutir qualquer coisa, contanto que os interlocutores estejam dispostos a debater e conheçam os critérios; por isso, o aluno que responde errado só poderá pedir uma revisão de questão com base nos critérios da prova e não nos critérios subjetivos dele mesmo, visto que na educação o que está em jogo não é a verdade, no sentido filosófico, mas sim o que o professor firmou como objetivo em termos de comportamento para o aluno; por isso, quem abre demais a mente está se esquecendo de que se a verdade existe e é relativa a critérios, então, o erro também existe e quem insiste nele não é “mente aberta”, mas sim burro, empacou, está fixo, não move o pensamento nem com as mais belas e racionais das argumentações. Pensar a verdade como relativa a critérios pode ser útil, pois nos permite debater, apontar erros e chegar num consenso, sem matar a discussão antes mesmo dela começar; por outro lado, o relativismo rasteiro, subjetivista, de senso comum, só serve para empacar o debate e seus participantes. Faz parte do repertório do burro.

É papel da filosofia pensar os pressupostos, ou seja, os critérios da verdade. Nem mesmo a matemática escapa disso. A geometria euclidiana trabalha com axiomas, o que permite a existência da geometria não euclidiana. Dois mais dois só são quatro porque os critérios da matemática básica assim determinam. Por isso, o aluno da primeira série não pode escrever na prova que dois mais dois são cinco e dizer ao professor que está certo segundo um outro tipo de cálculo, pois lá os critérios da matemática básica são claros. Por isso, um bom professor de álgebra linear que tive na faculdade de engenharia disse: “na matemática, as operações mais simples são as mais difíceis de provar”. Isso porque as operações mais simples estão cada vez mais próximas dos pressupostos, que são critérios e acabam ficando sem prova, são axiomáticos.

Em nossas conversas, no cotidiano, estamos toda hora lidando com a verdade e, portanto, com pressupostos, critérios e etc. A filosofia tem o importante papel de nos lembrar disso e, mais do que isso, nos dá instrumentos para identificar os pressupostos que utilizamos (não nos deixando tomar verdades como evidentes por si mesmas quando nos esquecemos disso) e refletir em cima delas.