domingo, 28 de novembro de 2010

Ser verdadeiramente hedonista é bom

Não raro, escutamos o uso do termo hedonista em seu sentido pejorativo para se criticar o brasileiro ou alguém em especifico. Nesse sentido pejorativo, ser hedonista significa buscar o prazer egoisticamente, ser desmedido na busca do prazer, curtir a vida superficialmente sem ligar para as consequências. Entretanto, o hedonismo, surgido na filosofia grega, helênica, com Aristipo, e que veio a culminar no Epicurismo, do filosofo Epicuro, nos ensina coisa um pouco diferente.

Para tratar desse tema, começaremos com a filosofia de Aristipo que, reflentido sobre a ética, ou seja, sobre a melhor maneira do ser humano viver a boa vida, afirmava, diferentemente dos estóicos e cínicos, que não deveríamos somente suportar a dor, mas tira-la do caminho. Para Aristipo, o prazer era o bem supremo e a dor o mal supremo. Epicureu, seguindo esse pensamento, desenvolveu a ética do prazer de Aristipo e fundou a escola filosófica do Epicurismo. Até aqui, poderíamos associar o sentido pejorativo de hedonismo com a busca máxima pelo prazer, mas Epicuro nos ensina que o hedonismo é algo diferente.

Epicuro ensinava que o resultado prazeroso de uma ação sempre deve ser ponderado em relação a seus efeitos colaterais. Isso significa dizer que alguém que se satisfaz com um chocolate, ou com vinho, por exemplo, deve ponderar o prazer de acordo com os efeitos colaterais dos excessos advindos do consumo desmedido dessas duas coisas. Muito chocolate dá dor de barriga, muito vinho deixa bêbado e causa a ressaca. Sendo assim, o verdadeiro hedonista pondera suas ações com vista a obter o máximo de prazer evitando a dor. Um verdadeiro hedonista nunca se entupiria de chocolate ou faria sexo não ponderado visto que ele deve evitar a dor vinda dos efeitos colaterais de tais ações. Portanto, o epicurismo resulta numa obtenção máxima de prazer mas, mais do que isso, no controle do desejo. Ser um epicureu, ou um hedonista, implica em não ser desmedido.

Além disso, Epicuro nos alerta para o fato de que o “prazer” de que ele trata não se refere necessariamente à satisfação dos sentidos (como comer um chocolate). Os valores gregos que propiciam um prazer a longo prazo, a temperança, a sinceridade e a amizade, acabam sendo mais importantes que os prazeres imediatos.

Mais tarde, epicureus, refletindo sobre a própria filosofia de Epicuro, criaram um lema: “Viva o momento!”. Esse lema, como podemos ver, tem suas relações com a idéia de Carpe Diem, do arcadismo. Essa frase também recebe algumas significações estranhas ao seu contexto literário, como se “aproveitar o dia” ou a vida, tivesse a ver com curtir os prazeres efêmeros. Ou quando uma mulher tatua em seu lombo “Carpe Diem” e isso acaba sendo associado à busca de prazer e sexo sem consequências, como no sentido pejorativo de hedonismo. No limite, se transforma numa justificativa para a busca dos prazeres egoísticos que geram dor. Na realidade, Carpe Diem é uma retomada do pensamento greco-românico, heleno, que tem suas relações com a ética, com viver a boa vida, como no Epicurismo. Por isso, deve-se ter em conta a ponderação.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Ônibus 174, Tropa de Elite e o complexo problema da violência no Brasil

Sem sombra de dúvidas, considero que Tropa de Elite foi um dos melhores filmes já produzido no Brasil. José Padilha acertou em cheio. Com o primeiro Tropa de Elite chamou a atenção e com o segundo, estourando nas bilheterias, conseguiu trazer á tona a complexidade do problema da violência no Brasil através da ficção (ou nem tão ficção assim).

Não me levem a mal quando falo isso. O primeiro Tropa de Elite foi muito bom, mas muito mal interpretado, na minha opinião. Quando o primeiro filme saiu, escutei pessoas enaltecendo o BOPE como solução para a violência, afinal, tinha “que matar tudo mesmo”. Isso sem falar de Luciano Huck, que teve seu rolex roubado e perguntou onde estava o capitão Nascimento, como se a solução para a violência no país estivesse simplesmente em ter BOPE’s por todo país. Do outro lado da moeda, também de forma equivocada, alguns chamaram Padilha de fascista, acreditando que ele estava propondo que o BOPE, não corrupto e assassino, fosse a solução para o problema. Outros trabalhos mostram que todas essas posições são equivocadas.

Tanto o documentário Ônibus 174, de Padilha, como o livro Elite da Tropa, de Luiz Eduardo Soares (antropólogo), André Baptista (BOPE) e Rodrigo Pimentel (BOPE), podem provar que essas duas interpretações do primeiro Tropa de Elite estão equivocadas. Além disso, o próprio Tropa de Elite 2 também cumpre essa função. A verdade é que o BOPE existe porque a violência no país existe de maneira brutal; mas isso não significa que o BOPE sozinho, com sua matança e torturas, seja a solução. Como nos mostrou Tropa de Elite 2, o buraco é muito mais embaixo. Não só a corrupção humana, como a corrupção estrutural, do próprio sistema, com suas contradições e rearranjos, fazem emergir a violência.

Ônibus 174, que inclusive contou com a participação dos autores de Elite da Tropa, procura reconstituir, através de depoimentos e documentos, a vida de Sandro, sequestrador de um ônibus no Rio de Janeiro. O acontecimento teve cobertura ao vivo na época e mereceu manchetes de vários jornais. A grande questão nesse sequestro era que Sandro não tinha nenhum pedido concreto e ninguém sabia suas motivações para sequestrar o ônibus. Parecia, na época, simplesmente uma pura maldade natural de Sandro, que alguns jornais e revistas da época compararam com o demônio. Mas, ao reconstituir a vida do sequestrador, descobre-se que, quando criança, Sandro viu a mãe ser esfaqueada, virou menino de rua e sofreu dessa dura realidade, dos meninos de rua como meninos invisíveis. Além disso, foi parar no instituto Padre Severino, um “depósito humano mirim”, onde, junto com outros meninos, apanhou e se revoltou mais ainda. Foi preso também.

Enquanto esses momentos da vida de Sandro vão sendo descobertos, Padilha vai mostrando a dura e brutal realidade de cada momento. Desde o que implica ser um menino de rua até a situação desumana da cadeia, que em vez de recuperar os presos, só os tornam mais revoltados e violentos. Tão tristes e violentos são esses momentos da vida de Sandro que, no final das contas, acabamos sendo compreensíveis com ele. Acabamos chegando a conclusão que a solução policial para os “Sandros” pelo Brasil é somente superficial, imediata. Para resolver o problema da violência é preciso resolver as contradições sociais e situações concretas pelas quais os “Sandros” se tornam violentos. Isso inclui a miséria, a invisibilidade dos meninos de rua, a desumanização dos institutos de recuperação e da cadeia.

Por isso tudo, o crime e a revolta por parte dos setores miseráveis, ignorados e negligenciados da sociedade chega a ser, em certo ponto, compreensível. Deve ser passível de punição, obviamente, mas antes de tudo é preciso se pensar em resolver a violência que emerge dessas situações negligenciadas não com mais opressão, mas sim resolvendo-se as próprias situações. A polícia, sendo uma função necessária para a sociedade, precisa ser mais valorizada. Outro problema é quando a corrupção e o crime são praticados por setores não miseráveis que acabam, além de tudo, sustentando e financiando ainda mais o crime, como os políticos corruptos e a classe média financiadora do tráfico. A própria banda podre da polícia, com o tráfico de armas e as milícias, no Rio de Janeiro, é um grande problema. Como disse Cap. Nascimento: “O que me fode é quem tem oportunidade e entra pra essa vida”.

sábado, 13 de novembro de 2010

O que diabos é Ideologia?

“Ideologia, eu quero uma pra viver”

A primeira vez que me incomodei com o termo ideologia foi aos catorze anos ao tentar interpretar a música de Cazuza. Sempre que tentava uma interpretação para o refrão não conseguia nada de inspirador. Era preciso buscar os possíveis significados da palavra ideologia para, somente daí, poder começar a construir uma boa interpretação para a música.

Minha primeira tentativa, realizada já naquela época, foi o dicionário. Segundo o dicionário Aurélio, Ideologia significa:

1. Conjunto de idéias que tem por base uma teoria política ou econômica.
2. Modo de ver próprio de um individuo ou de uma classe.

Tendo isso em mente, tentei novamente dar um sentido para o refrão de Ideologia. O resultado foi que não achei sentido nenhum e passei um bom tempo sem pensar nisso. Nenhumas das duas definições do dicionário me deram uma boa sustentação para apreciar Cazuza.

Mais tarde, eu percebi que essas duas definições do Aurélio são curiosamente relacionadas com as noções de ideologia para o senso comum. Para o senso comum, ideologia pode significar duas coisas:

1. Visão política ou partidária.
2. Visão de mundo.

Ora, podemos ver que há uma correspondência entre o que o senso comum entende por ideologia e as definições do Aurélio. Nesse contexto é que podemos dizer que a ideologia (visão política) de fulano tende para a esquerda ou que as ideologias (modos de ver o mundo) de duas pessoas podem ser diferentes. Entretanto, quando tentamos significar o refrão de Cazuza com essas duas definições, algo parece estar fora do lugar. Isso significa que precisamos ir mais a fundo, para os conceitos específicos de ideologia. Na obra Introdução à Análise do discurso, de Helena Brandão, é trabalhado um breve histórico do termo que nos elucidará para essa questão.

O termo ‘ideologia” surgiu, segundo Marilena Chauí, com o filósofo Destutt de Tracy em uma teoria que buscava  analisar, com métodos rigorosos, científicos, a faculdade de pensar. Com Napoleão, “ideologia” passou a ter um significado pejorativo visto que ele criticava os ideólogos franceses (pensadores da ideologia) por conferirem um risco ao poder, desconhecendo os problemas concretos e sendo abstratos, nebulosos demais.

Em Marx e Engels, o conceito de ideologia ganha bastante força e continua carregado de um significado negativo. Tal como Napoleão criticara os ideólogos franceses, Marx e Engels criticavam os filósofos alemães pela “maneira de ver abstrata e ideológica”. Aqui, a ideologia é “identificada com a separação que se faz entre a produção das idéias e as condições sociais e históricas em que são produzidas”. Em outras palavras, a ideologia seria a produção de idéias, “visão de mundo”, desvinculada da realidade material, concreta. Um exemplo disso é quando dizemos que uma coisa “na teoria é muito bonita, mas na prática não funciona”. Ou seja, estamos dizendo que a teoria ficou tão abstrata que só no campo das idéias ela faz sentido, pois fugiu da realidade.

Para Marx, a classe dominante, aquela que domina os meios materiais de produção, possui as idéias dominantes da época. Para poder dominar, essa classe se utiliza de um instrumento de dominação: a ideologia. Aqui, a ideologia ganha um significado que tem a ver com ilusão, com o mascaramento ou inversão da realidade. Para que a classe dominada permaneça dominada, ela precisa estar sobre o efeito da ideologia, dessa abstração que mascara as contradições da realidade. Ela, a ideologia, seria uma ilusão que se faz de verdade, "amenizando" as contradições sociais. A ideologia faz com que acreditemos, por exemplo, que pobre é pobre porque é “vagabundo”. Ou mesmo que se trabalharmos o bastante seremos inevitavelmente ricos e, conseqüentemente, felizes. Na realidade, vemos que nenhuma dessas duas coisas é verdade absoluta, ou natural, mas continuamos a acreditar fielmente nelas. Isso é ideologia. Para Marx, a ideologia é o conjunto de representações e idéias da classe dominante que se impõem sobre a classe dominada, funcionando como instrumento de dominação.

Mais pra frente, outros conceitos de ideologia, que levarão em conta não só funções negativas como positivas, virão. Ideologia para Ricoeur, por exemplo, tem função tanto de integração e coesão social, como de dominação, podendo ser positiva e negativa; portanto, teria mais afinidade com a definição de que ideologia é uma visão de mundo de uma classe, não só da classe dominante. Em Althusser, a ideologia tem a função de "transformar" indivíduos em sujeitos, sendo a-histórica.

Nesse ponto, creio que, para interpretar o refrão de Cazuza, o conceito de ideologia de Marx pode ser relevante: a ideologia como ilusão. Como podemos perceber na música Ideologia, temos um eu - lírico que está desiludido. Seu “prazer virou risco de vida”, seus “heróis morreram de overdose” e seus “sonhos foram todos vendidos”. Como viver nessa situação, desiludido em meio a uma realidade contraditória e cruel? O eu-lírico pede por uma ideologia para viver pois, em confronto com a realidade, só esta tendo infelicidades. Assim, a ideologia seria uma espécie de "ilusão necessária", já que a realidade se torna, por vezes, dura demais para nós. Entretanto, uma outra interpretação, talvez mais inspiradora, também é possível. Estando esse jovem "em cima do muro", ele brada por uma ideologia em seu sentido positivo, ou seja, um sistema de crenças e idéias que lhe permita, após as desilusões, pensar por si mesmo o mundo.

sábado, 6 de novembro de 2010

A Mulher Pura

Ao estudar a análise do discurso nos deparamos com certas idéias muito interessantes. Uma delas, a que mais me chamou a atenção, é a concepção de que os significados são determinados pela ideologia e pela constituição histórica do sujeito. O que isso quer dizer em termos mais simples? Que as palavras e as coisas não significam em si mesmas, não têm significado natural ou literal.

Ora, isso explica porque certos discursos, de tanto serem repetidos, viram verdades absolutas e são “naturalizados”. Por exemplo, quando falamos no conceito de criança, logo imaginamos uma criança inocente, frágil, que necessita de cuidados e educação. Entretanto, nem sempre foi assim. A criança, muito antes do Emilio de Rousseau, era pensada como um pequeno adulto. Portanto, quem criou o conceito de criança inocente fomos nós em algum momento da história. Mesmo assim, estamos tão habituados com esse conceito de criança que achamos que ele é natural, que sempre foi assim. Aí surge a psicanálise e nos diz que a criança pode ser perversa, chocando-se com nosso conceito “natural” de criança inocente, e um novo conceito de criança surge, menos inocente. Assim segue a história.

Nesse ponto é que devemos questionar certos “conceitos naturais” que já estão ultrapassados, como o conceito de criança inocente, porque eles já não estão dando conta da realidade. Um caso emblemático nesse sentido é o conceito de “mulher pura”, da suposta superioridade da mulher que se assemelha à criança, inocente, pura, virgem e submissa. Não sei dizer quando essa idéia de “mulher pura” começou, mas ela ainda tem seus resquícios atualmente. Muitos de nós ainda sentimos, ou mesmo só reproduzimos no discurso, que mulher boa é mulher pura.

Nos dias de hoje, com as vitórias diárias das mulheres na luta pela igualdade e liberdade, pelo direito à diferença também, essa história de mulher pura já devia ter ido pro brejo, mas incrivelmente ela está aí ainda. A maior prova disso são os tipos de cobrança e expectativas que nós, homens, fazemos e temos sobre as mulheres. A essa altura do campeonato, sabemos muito bem que, assim como nós, as mulheres podem fazer sexo com vários parceiros; estarem compromissadas e, ao mesmo tempo, sentir atração por outros homens; utilizarem da manipulação na sedução; conversarem com as amigas sobre diversos homens; e finalmente, não serem submissas.

Sabemos disso. Vemos todos os dias. Contudo, não aceitamos. Continuamos insistindo, inocente e estupidamente, que mulher boa é mulher pura, mesmo que o mais perceptível na realidade não seja isso. Acreditamos que para nós, homens, tudo bem fazer tudo aquilo citado acima. Esse é o “natural”. Mas, a mulher não pode. Homem cafajeste é “natural”, assim como a mulher pura o é. Qualquer coisa que fuja disso deverá ser duramente reprimida.

Agora, não só os homens caem nessa armadilha. Por estarem no meio da sociedade da mulher pura, algumas mulheres fazem teste de pureza, colocam anéis de pureza e, quando num “rolo”, discursam para o pretendente sobre sua pureza como mulher, como se isso fosse uma grande qualidade. No fundo, o pretendente sabe que essa qualidade só é boa perante a sociedade, porque entre quatro paredes a pureza é como a cor bege, brochante.

As mulheres não puras, que vejo todos os dias, essas sim são as mulheres de verdade, superiores. Elas não se dizem produtos da ilusão ingênua da pureza.

Se tudo isso é verdade, se o conceito de mulher pura está longe de representar a realidade e, pior que isso, representa um tipo de mulher fraca, já passou da hora desse conceito cair por terra e ser “desnaturalizado”. Mulher pura não é natural, nem poderosa, nem livre e muito menos sexy.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O tema do aborto (ou seria "o tema da vida"?)

No segundo turno das eleições desse ano, o tema do aborto surgiu com uma força avassaladora. Tanto Dilma quanto Serra, ás vezes podendo até contrariar suas reais posições sobre o tema, ficaram um tanto em cima do muro. Um falava de descriminalização, o outro de “questão de saúde pública”, mas ambos sabiam que, para a candidatura deles, aquela não era uma boa hora para se discutir o tema. Assumir posições rígidas naquele momento poderia resultar num “suicídio eleitoral”. Somente agora, com Dilma eleita, é que essa discussão não só pode como deve ganhar força.

Há cerca de sete meses, o programa Hora da Coruja, do filósofo Paulo Ghiraldelli Jr., convidou o Dr. Hélio Bicudo para um debate sobre esse tema. Procuramos, com o intuito de somar algumas perspectivas, elencar alguns pontos interessantes e questionamentos que surgiram durante esse programa de filosofia.

Um dos primeiros pontos que chama a atenção, já nos primeiros minutos do programa, é a preferência que Ghiraldelli demonstra ao chamar o “tema do aborto” de “tema da vida”. Afinal de contas, discutir aborto deveria ser, antes de tudo, discutir a própria vida. Por quê? Veremos.

Do ponto de vista estritamente legal, argumentou Bicudo, já há um problema. Enquanto para a constituição brasileira de 1988, por versar sobre o direito à vida e sua prevalência, o aborto seria crime, passível de punição; para o código penal de 1941 existiria o “aborto legal”, em caso de estupro ou risco de vida. Portanto, esse código estaria desatualizado com relação à constituição. O mais importante nesse contexto seria destacar que a vida é um direito fundamental.

Se tomarmos o direito à vida como direito fundamental, gerador de todos os outros direitos, a questão do aborto no quadro atual fica extremamente complicada. No caso de risco de vida, onde se deve escolher entre a vida da mãe e a da criança, estaríamos defendendo a vida mais provável de ser salva em detrimento da outra. Faz mais sentido salvar uma vida do que sacrificar duas. Até aí tudo bem, isso de certa forma faz sentido para nós. A coisa complica, de verdade, no caso de estupro, onde, durante a gestação, pode não haver risco de vida nem para a gestante, nem para a criança. Nesse caso, a vida da criança seria sacrificada pelo trauma da mãe. Seria isso certo? Não haveria outras soluções que não o aborto nesse caso? Complicado dizer. Afinal, essa é uma experiência muito forte para uma mulher e isso deve ser levado em consideração.

Outra discussão que permeia o tema do aborto é a questão do início da vida. Afinal de contas, onde a vida começa? Se ela começa em determinado tempo “x”, o aborto poderia ser feito antes disso? Bicudo argumenta que alguns bioéticos defendem que a vida começa na concepção. Se não for assim, isso daria margem para um marco “retórico” da vida que seria sempre mutável. Assim como décadas atrás nós só morríamos “oficialmente” quando o coração parasse, e hoje isso se dá quando há morte cerebral, no caso da vida estaríamos sempre discutindo o momento inicial da vida e, conseqüentemente, a melhor hora para se abortar.

Além disso, no Brasil, hoje, é possível perceber duas posições, a grosso modo: de direita e de esquerda. A esquerda defende, no limite, a legalização do aborto com um argumento que tem afinidade com o feminismo e com o conceito de liberdade. A mulher, com o direito de liberdade sobre seu corpo, poderia decidir sobre o aborto. Já a direita levanta a bandeira da vida. Defende que aborto é um crime contra a vida e deve ser punido. Estaria uma delas certa? Tendo em vista que a vida é um direito fundamental, e que ela começa na concepção, como poderíamos questionar esses posicionamentos de direita e esquerda?

Pelo lado da esquerda, concordamos que a mulher tenha liberdade sobre seu corpo. Mas, se isso implica numa decisão de aborto, não estaríamos tomando o feto como uma simples extensão do corpo da mulher, e não como outra vida? Pelo lado da direita, como vimos, é feita uma defesa à vida, o que é plausível segundo nossos pressupostos. Mas essa defesa esta baseada em um conservadorismo que acarreta certas contradições feias de se ver. Por exemplo, defende-se a criminalização do aborto, com vistas à defesa da vida, mas, ao mesmo tempo, luta-se pela pena de morte. Por isso, essa defesa da vida parece estar mais baseada em valores conservadores do que na discussão filosófica da vida e do direito fundamental à vida. Nesse contexto, podemos dizer que a esquerda pode estar atentando contra a vida quando faz prevalecer a liberdade da mulher em detrimento da vida da criança, enquanto a direita defende a vida sustentando-se em valores duvidosos, por vezes destrutivos.

Nesse ponto fica claro que, com esses questionamentos, discutir o aborto é, antes de tudo, discutir a vida, seja pensando a vida como direito fundamental, seja com dúvidas bioéticas. Acreditamos que esse seja o melhor caminho para se pensar o aborto. Nem fazendo-se prevalecer a questão da liberdade, nem os valores conservadores.