segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Amor, egoísmo e Nietzsche

Certa vez, um questionamento muito interessante me foi feito por um professor no ensino médio: “Afinal de contas, gostamos de uma pessoa ou gostamos de como ela faz a gente se sentir?”
Pensei alguns minutos e logo achei ter chegado à resposta: gostamos de como essa pessoa faz a gente se sentir.

Entretanto, ao perguntar aos meus colegas, a resposta foi outra: “Não. Gostamos da pessoa.”
Só mais tarde comecei a ver que, na realidade, essa pergunta é muito interessante. Não porque ela aparentemente não tem resposta, mas sim pelo discurso que a envolve. Explico.

Quando meu professor fez essa pergunta, o que pairava como pano de fundo era o tema do nosso egoísmo como seres humanos. É aí que o bicho pega. Ora, se o nosso conceito de amor, enraizado no cristianismo, é altruísta, ou seja, se amar é não ser egoísta, por que só amamos a quem, ou o que, nos faz sentir alguma coisa?

Quando pensamos no ideal de amor ao próximo, ideal cristão, aquele que tem a ver com a solidariedade, até podemos engolir a idéia do amor absolutamente altruísta. Podemos até dizer que esse amor se manifesta quando alguém pratica a solidariedade, ajudando totais desconhecidos, fazendo caridade. Essa idéia de amor  altruísta também se apresenta quando falamos do amor de mãe, que seria incondicional, ou mesmo do amor vindo da amizade. Todos esses exemplos seriam manifestações do amor supostamente altruísta. A caridade, o amor de mãe e a amizade seriam a prova de que o amor, de fato, não é egoísta; não tende para si, só para o outro. No entanto, fica difícil de engolir essa idéia quando falamos do amor que é conseqüência da paixão, o amor dos casais.

Que ataque a primeira pedra quem já beijou alguém por puro altruísmo (com essa idéia enganosa de “sexo por caridade”, tem gente que vai se achar altruísta). Vamos mais longe até: quem já namorou por puro altruísmo? Como diria o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. “Quem ama o feio, bonito lhe parece. O difícil é amar o feio.”

Paixão vem da palavra pathos, que também originou a palavra patologia, doença. A pessoa apaixonada é uma pessoa enferma de emoção pelo outro; mas quem está enferma é ela mesma. Enferma com a vontade de ter o outro para si, saciando a própria vontade. Nesse contexto, a paixão é egoísta. Por isso, se transferirmos a pergunta anterior para o nível da paixão, ela ficará até ridícula: quem já se apaixonou por puro altruísmo? Quem de nós já gostou muito de alguém conhece o ciúmes, que não deixa de ser uma manifestação egoísta ligada à paixão também.

A partir daqui , podemos dizer que o amor dos casais, que só se manifestará como conseqüência da paixão, só pode provir de algo que é, de certa forma, egoísta: a própria paixão. Quando essa dimensão egoísta do amor acaba, quando não sentimos mais nada perto daquela pessoa, dizemos que o amor acabou. Não vemos sentido mais em ficar com ela, por mais que ela ainda esteja apaixonada por nós. Nesse caso, não há altruísmo; o relacionamento deve acabar. Ninguém permanece com o outro por caridade.

Além disso, se pensarmos nos “amores altruístas” por outros vieses, veremos que eles também têm suas dimensões “egoístas”, querem satisfazer não só necessidades dos outros como nossas. Ora, faz-se caridade não por puro altruísmo, mas por que isso nos faz sentir bem, contribuindo para uma sociedade melhor em que nós mesmos vivemos. Ajudar os outros é ajudar a si mesmo. E isso não é ruim.

Agora, podemos confrontar o que foi dito com as respostas de meus colegas, e minha, à pergunta do professor. Ora, se a dimensão egoísta esta presente em tudo que se diz puramente altruísta, por que meus colegas insistiram em responder que é possível gostar da pessoa, abdicando dos próprios sentimentos? Nietzsche ilumina a questão.

Caso o filósofo estivesse presente, ele diria que meus colegas resolveram a questão segundo pensamentos moralizantes. Sendo nossos valores, culturas e pensamentos profundamente ligados à tradição cristã e ao pensamento de Kant, onde a moral é o Dever do homem, tendemos a moralizar as soluções; a colocá-las em termos de bem e mal. Meus colegas, moralizantes, não podiam aceitar que o amor fosse um ato que fosse parte “egoísta”. Mesmo que isso saltasse aos olhos deles, responderam que se “gostava da pessoa”; pois admitir o oposto seria dizer que um valor do bem, o amor, possuiria um lado supostamente mal, o egoísmo. Essa contradição era inaceitável para eles. Para a nossa cultura enraizada no cristianismo, ser egoísta, fazer as coisas com interesses para si, é ser necessariamente mau. O amor é do bem e, por isso, não é egoísta. Mas será que só pensar nos outros, abdicando-se de si mesmo, é necessariamente "bom" e fazer algo a interesse de si próprio, "egoista", é necessariamente "mau"? 

Aqui, Nietzsche nos convida para ir “além do bem e do mal”. Ele nos convida a parar de pensar em termos dessa dualidade e usar como critério para a valoração, ou avaliação, dos valores, como altruísmo e egoísmo, a própria vida. Ou seja, para ver se o egoísmo e o altruísmo são “bons” como valores, usemos como critério não essa moral fraca, do bem e do mal; mas sim a própria vida. Em outras palavras: “Ser egoísta, ou altruísta, contribui para a exaltação ou para a degenerescência da vida?”

Com essa questão em mente, Nietzsche não ficaria satisfeito nem com a resposta de meus colegas, nem com a minha. Talvez ele até ficasse um pouco satisfeito com a minha. Mesmo assim, não ficaria totalmente satisfeito. Por quê? Porque assim como não podemos pensar altruísmo e egoísmo simplesmente através da dualidade “bem e mal”; não seria coerente achar que altruísmo e egoísmo se excluem.

Ora, uma pessoa puramente egoísta (isso só deve existir no plano da psicopatia), como já é sabido, não dá a mínima para a vida dos outros; portanto, não contribui para a vida na medida em que pode aniquilar os outros em favor de si mesma. Mas, pior que a pessoa puramente egoísta, para Nieztsche, talvez seja a pessoa puramente altruísta, pois ela é capaz de negar a própria vida. Em determinado sentido, ela não exerce sua “vontade de potencia” e aniquila a si mesma. Costumamos achar isso bonito, pois é a mesma idéia do sacrifício de Jesus. O homem puramente altruísta se sacrifica pelos outros e vai para o céu. Para Nietzsche, isso é a decadência, pois dá margem para que o homem sacrifique aquilo que ele tem de mais valor, sua própria vida, terrena, não por puro altruísmo, como Jesus o fez, mas por sua vida no além-mundo, no céu. Além disso, segundo o filósofo, o budismo seria uma religião superior ao cristianismo justamente por voltar para si os interesses espirituais, num certo “egoísmo”. A pura objetividade enfraqueceria o espírito. O budismo incita o respeito tanto ao outro como a si próprio. É uma luta contra o sofrimento de si.

Sendo assim, se todos os nossos atos altruístas são egoístas em certa medida, voltam-se para nós mesmos, e o egoísmo, como necessidade para si, pode ser altruísta quando sustenta a paixão e a amizade, talvez esteja na hora de superarmos essa dualidade entre egoísmo e altruísmo deixando de pensar esses conceitos em termos de bem e mal.

Tendo dito tudo isso, podemos tentar uma boa resposta (se não boa, melhor) para a pergunta do professor. “Gostamos da pessoa ou gostamos de como ela faz a gente se sentir"?

Resposta: “Altruísmos e egoísmos, bem e mal, a parte, não se trata de gostar de uma pessoa ou gostar de como ela faz a gente se sentir. Se trata de gostar de uma pessoa porque ela faz a gente se sentir como gostamos. Gostar do outro é, assim, tanto ‘altruísta’, na medida em que aceitamos, respeitamos e nos doamos ao outro, como ‘egoísta’, na medida em que esse outro vivifica nosso espírito na luta contra o sofrimento. Amar alguém é estender a si próprio no outro”. O amor é um jogo de egoísmo e altruísmo.

5 comentários:

  1. Quando desci a barra de rolagem e li a frase de conclusão, achei: "É só mais um blogueiro falando bobagem" mas li o todo e percebi que você entendeu o EGO e Vontade de Potência de Nietzsche devidamente, mas o principal é que você soube articular. Não se vê textos como esse em blogs, você deve concordar comigo.
    Parabéns.
    twitter.com/niloaraujo
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  2. Obrigado, nilosp!
    Estou pensando até em tirar a frase de conclusão para evitar evasões precipitadas. Hahaha
    Sempre que puder, dê uma passada no blog.

    Abraço!

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  3. Aeee, concordo plenamente! Aliás, estou terminando um Conto e uma Peça sobre o tema...

    luan.araujomoura%40facebook.com

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. iago, parabéns pela linha de raciocínio. Gostei!!

    Pergunto: o conceito de egoísta poderia estar sendo confundido com egocêntrico? Penso que o egocêntrico é o patológico, na medida que não consegue diferenciar o outro dele mesmo. Tornando o outro uma apêndice do seu eu. E com isto, seu dono.

    Não seria o egoísta alguém centrado nos seus desejos e necessidades? Um oportunista? Alguém que pega o que quer? Aquele que exerce com consciência seu livre arbítrio?

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