domingo, 31 de outubro de 2010

Namoro líquido?

“Eu quero um relacionamento, um namorado; mas não quero me sentir presa”. Já não é a primeira vez que eu ouço um desabafo de uma amiga nesse sentido.

O que tem de tão interessante nessa frase? Ora, ela é a perfeita representação de um conflito que Zigmunt Bauman, sociólogo, apontaria como típico do individuo na modernidade líquida. Querer estar num relacionamento, que envolve a abdicação de certas liberdades e, ao mesmo tempo, querer ser totalmente livre, é coisa de gente do nosso tempo. Para entender esse conflito, é preciso começar pela própria idéia de modernidade liquida. Esse primeiro momento, de explicação do que é modernidade liquida, pode parecer meio cansativo, mas compensa para entendermos nossos conflitos quando o tema é relacionamentos.

Para Bauman, o momento em que estamos é o que ele denominou de modernidade liquida. Na verdade, o que mudou foi a modernidade sólida, ou seja, aquela em que nos baseávamos em valores e instituições sólidas próprias da modernidade, vindas das revoluções burguesas e do iluminismo. Hoje, essas instituições e valores são líquidos, fluidos. Significa dizer que já não nos apoiamos em coisas sólidas. Isso pode ser visto na chamada “quebra das instituições”. Casamento, família e igreja já não são instituições tão firmes e delineadas como antigamente. Além disso, as idéias de individuo e liberdade entram em conflito.

Em várias de suas obras, que estão mais para ensaios, Bauman investiga justamente isso: de que forma essa modernidade liquida tem se refletido em nós. Uma dessas obras ele intitulou de “amor liquido”. Aqui, encontramos inícios de respostas para o conflito do ínicio do texto. Bauman defende que essa condição da modernidade liquida tem fragilizado os laços humanos; o amor não é mais solido, ele é liquido.

O sociólogo argumenta que, na contemporaneidade, temos pensado várias coisas em termos de investimento. O que era algo típico da economia foi transposto para as relações humanas. Pensamos os relacionamentos em termos de investimento. Sendo assim, começa a fazer sentido dúvidas como “será que compensa casar?” ou “será que vale a pena ter um filho?”. Estar em um relacionamento, e sabemos muito bem disso, tem seus custos e benefícios. A minha amiga citada no começo do texto também sabe disso. Ela sabe que é um beneficio ter alguém para lhe dar carinho, mas que isso provavelmente lhe implicará um custo, sua liberdade (se é que isso existe mesmo).

Aqui, podemos começar a fazer uma conexão dessa idéia com várias conflitos e fenômenos típicos do nosso tempo. Por exemplo, a fase “solteiro”, fase “namoro”. Dizemos que estamos sempre alternando essas fases porque, no conflito vindo da idéia de investimento, uma hora vemos que o beneficio está em ficar solteiro, em outra, estar namorando. Podemos enxergar isso no número de divórcios, que aumentou incrivelmente nos últimos tempos e agora tem diminuído novamente.

O próprio “ficar” é uma forma de tentar resolver esse conflito do custo/beneficio dos relacionamentos. Ficar com alguém nada mais é do que obter muitos benefícios, os carinhos e beijos, e deixar para lá os custos vindos do relacionamento “sério”. Nesse sentido, poderíamos cair na armadilha de pensar que “ficar” seria uma boa solução sempre. Entretanto, na modernidade liquida, o relacionamento duradouro é liquido, uma hora ele é predominantemente custo, outra é predominantemente beneficio. Assim, o ficar passa a implicar custos, que agora é o fato de que não se tem algo duradouro com o outro, e namorar acaba virando uma boa opção. Pode parecer frio demais pensar que fazemos isso, custo/beneficio, com outras pessoas. Mas, esse seria mais um conflito do nosso tempo.

Ficar, namorar ou casar? Depende. Pelos nossos valores não serem mais sólidos, essa é a melhor resposta que nós, da modernidade liquida, temos para todos os conflitos: “depende”. É muito conflito e liquidez pra nossa cabeça.

PS: Indo um pouco além de Bauman, eu não levantaria o conceito de investimento. Planejamento me parece uma idéia melhor. Quando a modernidade surgiu, começamos a planejar tudo para alcançar nossos objetivos. Essa forma de pensar planejada se transpôs para os relacionamentos humanos, fazendo com que nossas escolhas com o objetivo nada claro de "ser feliz" fossem planejadas. Esses costumes de planejar parecem totalmente racionais, mas não o são, pois já estariam enraizados em nós. Sendo assim, planejamos relacionamentos pensando nos custos/beneficios emocionais de forma até "inconsciente".

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Amor, egoísmo e Nietzsche

Certa vez, um questionamento muito interessante me foi feito por um professor no ensino médio: “Afinal de contas, gostamos de uma pessoa ou gostamos de como ela faz a gente se sentir?”
Pensei alguns minutos e logo achei ter chegado à resposta: gostamos de como essa pessoa faz a gente se sentir.

Entretanto, ao perguntar aos meus colegas, a resposta foi outra: “Não. Gostamos da pessoa.”
Só mais tarde comecei a ver que, na realidade, essa pergunta é muito interessante. Não porque ela aparentemente não tem resposta, mas sim pelo discurso que a envolve. Explico.

Quando meu professor fez essa pergunta, o que pairava como pano de fundo era o tema do nosso egoísmo como seres humanos. É aí que o bicho pega. Ora, se o nosso conceito de amor, enraizado no cristianismo, é altruísta, ou seja, se amar é não ser egoísta, por que só amamos a quem, ou o que, nos faz sentir alguma coisa?

Quando pensamos no ideal de amor ao próximo, ideal cristão, aquele que tem a ver com a solidariedade, até podemos engolir a idéia do amor absolutamente altruísta. Podemos até dizer que esse amor se manifesta quando alguém pratica a solidariedade, ajudando totais desconhecidos, fazendo caridade. Essa idéia de amor  altruísta também se apresenta quando falamos do amor de mãe, que seria incondicional, ou mesmo do amor vindo da amizade. Todos esses exemplos seriam manifestações do amor supostamente altruísta. A caridade, o amor de mãe e a amizade seriam a prova de que o amor, de fato, não é egoísta; não tende para si, só para o outro. No entanto, fica difícil de engolir essa idéia quando falamos do amor que é conseqüência da paixão, o amor dos casais.

Que ataque a primeira pedra quem já beijou alguém por puro altruísmo (com essa idéia enganosa de “sexo por caridade”, tem gente que vai se achar altruísta). Vamos mais longe até: quem já namorou por puro altruísmo? Como diria o filósofo Paulo Ghiraldelli Jr. “Quem ama o feio, bonito lhe parece. O difícil é amar o feio.”

Paixão vem da palavra pathos, que também originou a palavra patologia, doença. A pessoa apaixonada é uma pessoa enferma de emoção pelo outro; mas quem está enferma é ela mesma. Enferma com a vontade de ter o outro para si, saciando a própria vontade. Nesse contexto, a paixão é egoísta. Por isso, se transferirmos a pergunta anterior para o nível da paixão, ela ficará até ridícula: quem já se apaixonou por puro altruísmo? Quem de nós já gostou muito de alguém conhece o ciúmes, que não deixa de ser uma manifestação egoísta ligada à paixão também.

A partir daqui , podemos dizer que o amor dos casais, que só se manifestará como conseqüência da paixão, só pode provir de algo que é, de certa forma, egoísta: a própria paixão. Quando essa dimensão egoísta do amor acaba, quando não sentimos mais nada perto daquela pessoa, dizemos que o amor acabou. Não vemos sentido mais em ficar com ela, por mais que ela ainda esteja apaixonada por nós. Nesse caso, não há altruísmo; o relacionamento deve acabar. Ninguém permanece com o outro por caridade.

Além disso, se pensarmos nos “amores altruístas” por outros vieses, veremos que eles também têm suas dimensões “egoístas”, querem satisfazer não só necessidades dos outros como nossas. Ora, faz-se caridade não por puro altruísmo, mas por que isso nos faz sentir bem, contribuindo para uma sociedade melhor em que nós mesmos vivemos. Ajudar os outros é ajudar a si mesmo. E isso não é ruim.

Agora, podemos confrontar o que foi dito com as respostas de meus colegas, e minha, à pergunta do professor. Ora, se a dimensão egoísta esta presente em tudo que se diz puramente altruísta, por que meus colegas insistiram em responder que é possível gostar da pessoa, abdicando dos próprios sentimentos? Nietzsche ilumina a questão.

Caso o filósofo estivesse presente, ele diria que meus colegas resolveram a questão segundo pensamentos moralizantes. Sendo nossos valores, culturas e pensamentos profundamente ligados à tradição cristã e ao pensamento de Kant, onde a moral é o Dever do homem, tendemos a moralizar as soluções; a colocá-las em termos de bem e mal. Meus colegas, moralizantes, não podiam aceitar que o amor fosse um ato que fosse parte “egoísta”. Mesmo que isso saltasse aos olhos deles, responderam que se “gostava da pessoa”; pois admitir o oposto seria dizer que um valor do bem, o amor, possuiria um lado supostamente mal, o egoísmo. Essa contradição era inaceitável para eles. Para a nossa cultura enraizada no cristianismo, ser egoísta, fazer as coisas com interesses para si, é ser necessariamente mau. O amor é do bem e, por isso, não é egoísta. Mas será que só pensar nos outros, abdicando-se de si mesmo, é necessariamente "bom" e fazer algo a interesse de si próprio, "egoista", é necessariamente "mau"? 

Aqui, Nietzsche nos convida para ir “além do bem e do mal”. Ele nos convida a parar de pensar em termos dessa dualidade e usar como critério para a valoração, ou avaliação, dos valores, como altruísmo e egoísmo, a própria vida. Ou seja, para ver se o egoísmo e o altruísmo são “bons” como valores, usemos como critério não essa moral fraca, do bem e do mal; mas sim a própria vida. Em outras palavras: “Ser egoísta, ou altruísta, contribui para a exaltação ou para a degenerescência da vida?”

Com essa questão em mente, Nietzsche não ficaria satisfeito nem com a resposta de meus colegas, nem com a minha. Talvez ele até ficasse um pouco satisfeito com a minha. Mesmo assim, não ficaria totalmente satisfeito. Por quê? Porque assim como não podemos pensar altruísmo e egoísmo simplesmente através da dualidade “bem e mal”; não seria coerente achar que altruísmo e egoísmo se excluem.

Ora, uma pessoa puramente egoísta (isso só deve existir no plano da psicopatia), como já é sabido, não dá a mínima para a vida dos outros; portanto, não contribui para a vida na medida em que pode aniquilar os outros em favor de si mesma. Mas, pior que a pessoa puramente egoísta, para Nieztsche, talvez seja a pessoa puramente altruísta, pois ela é capaz de negar a própria vida. Em determinado sentido, ela não exerce sua “vontade de potencia” e aniquila a si mesma. Costumamos achar isso bonito, pois é a mesma idéia do sacrifício de Jesus. O homem puramente altruísta se sacrifica pelos outros e vai para o céu. Para Nietzsche, isso é a decadência, pois dá margem para que o homem sacrifique aquilo que ele tem de mais valor, sua própria vida, terrena, não por puro altruísmo, como Jesus o fez, mas por sua vida no além-mundo, no céu. Além disso, segundo o filósofo, o budismo seria uma religião superior ao cristianismo justamente por voltar para si os interesses espirituais, num certo “egoísmo”. A pura objetividade enfraqueceria o espírito. O budismo incita o respeito tanto ao outro como a si próprio. É uma luta contra o sofrimento de si.

Sendo assim, se todos os nossos atos altruístas são egoístas em certa medida, voltam-se para nós mesmos, e o egoísmo, como necessidade para si, pode ser altruísta quando sustenta a paixão e a amizade, talvez esteja na hora de superarmos essa dualidade entre egoísmo e altruísmo deixando de pensar esses conceitos em termos de bem e mal.

Tendo dito tudo isso, podemos tentar uma boa resposta (se não boa, melhor) para a pergunta do professor. “Gostamos da pessoa ou gostamos de como ela faz a gente se sentir"?

Resposta: “Altruísmos e egoísmos, bem e mal, a parte, não se trata de gostar de uma pessoa ou gostar de como ela faz a gente se sentir. Se trata de gostar de uma pessoa porque ela faz a gente se sentir como gostamos. Gostar do outro é, assim, tanto ‘altruísta’, na medida em que aceitamos, respeitamos e nos doamos ao outro, como ‘egoísta’, na medida em que esse outro vivifica nosso espírito na luta contra o sofrimento. Amar alguém é estender a si próprio no outro”. O amor é um jogo de egoísmo e altruísmo.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A preguiça do (potencial) bom aluno na universidade

Antes de tudo, é preciso frisar que, diferentemente do que parece, esse texto não tratará da preguiça do mau aluno; aquela tão condenada e pronunciada pelos corredores da universidade. Esse texto é uma tentativa de responder o porquê, muitas vezes, o bom aluno é tentado pela preguiça dentro da universidade.

Roland Barthes, em um ensaio sobre a preguiça, discorre sobre um tipo de preguiça que, ao contrário do que pensamos, é virtuosa. Ele divide a preguiça em feliz e infeliz.

Resumidamente, a preguiça feliz é aquela resultada de uma atividade prazerosa, de lazer. Como por exemplo, curtir a preguiça depois de um jogo de futebol ou num fim de semana. A preguiça infeliz, essa sim nosso alvo aqui, é a preguiça do tipo gerada no “modelo escolar”. O professor, de má vontade, impõe aos alunos que façam uma resenha inútil que, além de tudo, ele mesmo não vai ler.

Sendo assim, a preguiça infeliz é aquela gerada pela revolta. O aluno encara o livro e a folha de papel da resenha, sabe que a atividade é sem sentido, e se recusa a fazer. É nesse contexto que as duas preguiças são consideradas virtuosas. Uma permite o ócio e a outra é gerada pela revolta. Para Barthes, por conta disso, é possível que um aluno preguiçoso seja bom.

Na universidade, é o mesmo caso. Enquanto o mau aluno tem preguiça para todas as disciplinas, o bom aluno sabe o terreno em que pisa. Ele sabe muito bem diferenciar os bons professores, aqueles que realmente irão lhe acrescentar algo e orientá-lo para o bom caminho, dos professores ruins. Ele sente o cheiro de longe.

Os professores ruins não cumprem compromissos, não ministram aulas, ensinam com pretensão aquilo que não sabem e cobram trabalhos sem sentido para “encher lingüiça”. Não raro, cobram seminários para que os alunos dêem aula por ele. O bom aluno sabe diferenciar um seminário construtivo, que gera debate, de um dispositivo preenchedor de lacuna pedagógica. Por isso, por zombar e desrespeitar o tempo e o potencial dos alunos, os maus professores causam a preguiça nos bons alunos, que não veem sentido em perder tempo com o que não irá lhes acrescentar nada.

O que tenho visto na universidade é a preguiça em todos os sentidos expostos aqui. É comum ver bons alunos estudando e assistindo impecavelmente tanto disciplinas difíceis, com bons professores criteriosos, como disciplinas “fáceis” de bons professores. Por outro lado, esses mesmos alunos tem preguiça das disciplinas ministradas por maus professores. Isso é bom e ruim, ao mesmo tempo.

A tão debatida preguiça do mau aluno, aquela gerada pelo “não quer nada com nada”, constitui o lado ruim. O lado que, com razão, os bons professores criticam. Já o lado bom está na preguiça revoltosa dos bons alunos, que não aceitam se submeter à falta de respeito com suas potencialidades. O que me parece coerente nesse contexto é que, assim como os bons professores criticam, com razão, os maus alunos; os bons alunos devem ser mais competentes e mobilizados em suas revoltas para com os maus professores. A preguiça infeliz já é um sinal de revolta, mas não é eficiente. É pouco provável que tenha o poder de mudar a situação.

Bons alunos de todo mundo, uni-vos!

domingo, 10 de outubro de 2010

A melhor desculpa de todas

Foi convidado para uma festa que não quer ir? Cobrado por um trabalho que não fez? Aquela pessoa que você não está afim, mas fica insistindo pra vocês saírem, te jogou na parede com mais um convite e você gostaria de sutilmente recusar? Ora, a melhor forma de se desfazer de tudo isso é com uma desculpa. Mas não qualquer desculpa. Tem que ser uma desculpa estratégica, eficiente, efetiva e eficaz. Uma desculpa que realmente funcione no mundo contemporâneo globalizado. Qual é a melhor desculpa de todas, atualmente? A desculpa com maior probabilidade de funcionar?

“Não tenho tempo”.

No mundo de hoje, é muito fácil aceitarmos a falta de tempo. Caso falte para nós uma desculpa especifica para uma determinada ocasião, “não tenho tempo” é a carta na manga; é o coringa do baralho das desculpas do século XXI. Podemos dizer que alguns de nós realmente não têm tempo e outros somente acham, ou bravejam, que não têm. Isso não importa. Não importa, para o funcionamento dessa desculpa, se verdadeiramente temos tempo ou não. O fato é que essa desculpa funciona mesmo quando temos tempo e ela não passa de uma desculpa. Mas, por que ela funciona tão bem?

Funciona, provavelmente, porque desde as reformas protestantes, e das revoluções burguesas liberais, não só se deu um ponta-pé a respeito da idéia de liberdade do indivíduo, de se definir pela sua vida terrena, como também se fortaleceu a relação entre trabalho e dignidade. Sendo assim, nesse contexto, o individuo não se define pelo seu parentesco, mas sim pelo seu trabalho. O burguês não mais precisava se preocupar em não ser reconhecido por não ter nascido nobre. Tudo que ele precisava era trabalhar o bastante para ser alguém. Hoje, essa idéia ainda perdura. É dentro dessa perspectiva que continuamos a associar tanto valor ao trabalho. Só pode ser alguém quem trabalha. E quanto mais se trabalha, melhor. Sendo assim, tendemos a acreditar que quanto menos tempo uma pessoa tem, por conta de mais trabalho, mais digna ela é.

Somos tão ligados à idéia de “falta de tempo”, e de como essa falta deve ser obrigatória na vida das pessoas, que se alguém nos diz ter tempo, pois não vai fazer nada na quarta-feira a tarde, achamos estranho. Logo fazemos observações sarcásticas do tipo: “eee vida boa, eim!” ou “tá folgado... Trabalhar que é bom, nada, né?”. No mundo de hoje, o normal é não ter tempo. Se se tem tempo, achamos que algo deve estar errado. E pior, achamos que o mundo sempre foi assim. Naturalizamos a idéia do ócio como “oficina do diabo” e do trabalho como poço da dignidade. Sendo assim, aceitamos que não ter tempo é uma boa desculpa, pois isso significa que não estamos ociosos, que estamos trabalhando e, portanto, somos dignos. Por isso, dizer que alguém tem tempo de sobra é, não raro, uma ofensa.

Contudo, será que “não ter tempo”, o que significa estar trabalhando a maior parte do tempo, é sempre algo positivo? Até certo ponto o trabalho dignifica, mas em que momento ele deixa de ser dignificante e se torna exploração, seja por parte dos outros, seja de si mesmo? Em Atenas, o filósofo só podia ser um cidadão, livre, pois o trabalho braçal era função dos escravos e a atividade de filosofar só se concretizava através do ócio. O sacerdócio, por exemplo, é o ócio sagrado. Nesse contexto podemos perceber que o ócio também possui uma função positiva na medida em que ele permite a reflexão, o “parar para pensar”. Portanto, o ócio e o trabalho devem coexistir. É no trabalho que podemos nos tornar úteis para a sociedade e é no ócio que podemos refletir acerca do nosso trabalho, do mundo e de nós mesmos.

Enquanto estivermos associando a “falta de tempo” e, portanto, o excesso de trabalho à dignidade, não teremos tempo para o ócio. Não teremos tempo para a reflexão. Ou seja, estaremos refletindo muito pouco enquanto o “não tenho tempo” for uma boa desculpa, a melhor desculpa de todas.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

O jovem que não é (ou não se acha) jovem

“A juventude está perdida” é uma frase que já deve ter lá uma certa idade... Para não ser politicamente correto, deve ser uma expressão tão velha e passada que já está caducando. Nada mais esperado do que ouvir esse tipo de frase de nossos avós, por exemplo. O problema é quando começamos a ouvir esse tipo de expressão caduca dos próprios jovens.

A definição de jovem é variável. Entretanto, se formos fazer um apanhado das diversas definições que existem por aí e tirarmos uma média, o jovem é aquele individuo com idade entre 15 e 25 anos. Aí é que reside o problema. Tenho ouvido de uma parcela de pessoas com idade entre 18 e 25 anos, portanto jovens, que a “juventude está perdida”. O que é um paradoxo a primeira vista.

O que tem acontecido, me parece, é que a cultura que se constrói e se reproduz no meio escolar, dos 13 aos 17 anos, tem sido diferente da cultura dos jovens de 18 à 25 anos; fazendo com que esses se diferenciem, ou queiram se diferenciar, daqueles. Ou seja, nós, de 22 anos, somos diferentes daqueles de 16 anos. Somos semi-adultos e eles é que são jovens. O que percebemos nesse ínterim é que o conceito de jovem não tem dado conta de diferenciar esses dois segmentos. Os jovens de 22 anos não querem estar no mesmo grupo dos jovens de 16 anos.

Alguns problemas decorrem dessa diferenciação. Um deles é que os “semi-adultos”, para se diferenciar, costumam condenar a cultura dos jovens escolares, numa pretensa posição de superioridade que beira o autoritarismo e o paternalismo; além de ser algo cínico. Talvez o exemplo mais representativo desse tipo de “semi-adulto”, que não se acha jovem, é o vlogueiro Felipe Neto. Com 22 anos, e portanto jovem, Felipe Neto ficou famoso na internet pelos seus vídeos de humor e crítica. Aqui não pretendemos dizer que seu trabalho é ruim, eu mesmo já ri muito com os vídeos do vlogueiro. O problema está no discurso perpetuado por ele e que muitos outros jovens aderem e reproduzem de maneira até ingênua.

Grande parte das críticas de Felipe se direciona aos produtos culturais consumidos geralmente pelo jovem escolar, de 13 a 17 anos de idade. Ele já criticou o livro Crepúsculo e as bandas coloridas, acusando esses produtos culturais de verdadeiros lixos que servem para fazer os “jovens” de “massa de manobra”. Além disso, Felipe Neto costuma perpetuar um saudosismo dizendo que na época dele o bom era Cazuza e Legião Urbana. Músicas de protesto. Não raro, muitos jovens comentam em seus vídeos coisas como “é isso aí! Esses jovens não lêem nada, só escutam porcaria”.

Quais são os problemas desse discurso “crítico” de Felipe Neto? Eu tenho a mesma idade que o vlogueiro, portanto, posso falar que esse saudosismo dele é barato. Nós nascemos em 1988. Bandas como Cazuza e Legião fizeram sucesso quando eu e ele éramos apenas moleques. Mesmo que escutássemos essas bandas, mais tarde os manonas assassinas e etc., muito provavelmente não fazíamos isso por conta do conteúdo crítico das letras, mas sim pelo momento, pelo que tínhamos acessos pelas rádios e por quem convivíamos. Mesmo assim, não podemos descartar, é claro, que as pessoas que, como nós, viveram a adolescência nos anos de 1990, vivenciaram muitos movimentos culturais de massa “idiotas”: backstreet boys, Hanson, é o Tchan... Ao perpetuar esse saudosismo falso, Felipe Neto apaga do discurso os movimentos “idiotas” que ele vivenciou e glorifica as músicas críticas que ele não entendia.

Sendo assim, porque somos tão categóricos ao condenar a “juventude” de agora pelo que eles curtem? Nós mesmos passamos por isso e crescemos. E mesmo tendo crescido, hoje, ainda dançamos funk e sertanejo universitário, cultura de massa, nas festas; o que, em conteúdo crítico, não se diferencia muito de bandas coloridas. Nem é por isso que estamos decaindo, também. Ninguém agüenta manifestações artísticas críticas cem por cento do tempo. Às vezes a melhor solução para uma semana estressante é um filme “babaca” de Holywood. Dizer que Funk e bandas coloridas não são cultura é coisa de gente sem cultura, que não sabe a definição de cultura. Essas pessoas, como Felipe Neto, acreditam que cultura é somente a “alta cultura”, de elite. Por isso têm dificuldade de compreender os jovens escolares e a si mesmos.

Outro aspecto cínico do discurso de Felipe Neto, que chamarei aqui de discurso pseudo-adulto elitista, pois não é um discurso só dele, mas de todos esses jovens de classe média-alta que falam que a “juventude está perdida”, é a questão da leitura. Ao criticar o livro Crepúsculo, esses jovens defendem que os adolescentes deveriam ler Machado de Assis. Como se eles, nós, tivéssem lido e absorvido Machado de Assis com 13 anos. Hoje eu posso me curvar á Machado, mas isso não se daria se, com 13 anos, eu não tivesse ganhado o meu primeiro livro: Harry Potter. Esse livro é uma literatura tão fraca quanto Crepúsculo, mas me iniciou o gosto pela leitura. Nesse sentido, será que adolescentes lendo Crepúsculo é tão ruim assim?

A juventude costumava ser associada à rebeldia. Hoje, o que eu vejo, são jovens passando dos dezoito anos e se tornando mais conservadores que seus pais. Além de não se considerarem jovens por se acharem “críticos”, diferente da parcela mais nova de jovens que seria supostamente alienada, esses jovens não são jovens porque não são rebeldes. Com seu conservadorismo, perpetuam um discurso autoritário onde tudo deve ser como eles ditam. Se não é, “tem que matar esses coloridos!”, “jogar uma bomba na favela!”. Eu só posso esperar que essa onda jovem-fascista, assim como a expressão “a juventude está perdida”, caduque também. Alias, tendo em vista essa parcela pseudo-adulta elitista da sociedade, talvez a juventude esteja perdida mesmo.

Sobre dar Esmola


“Amigo, vim de Brasília para cá e não tenho dinheiro para voltar pra casa, será que você pode me ajudar?”
“Moço, tenho quatro filhos, sou mãe solteira e não tenho dinheiro pra dar comida aos meus filhos, me dá uma ajuda?”

Qualquer um que more na cidade, hoje, com certeza já ouviu algum desses pedidos vindos de algum estranho; seja nas ruas, no portão de casa ou mesmo no ônibus. Aqui em Curitiba é comum que pessoas necessitadas peçam colaborações dentro dos “vermelhões”, ônibus bi-articulados típicos da cidade. Ao ouvir um pedido desses, muitos de nós entram num dilema: afinal de contas, ajudo ou não ajudo?

Esse dilema surge de uma série de conflitos de valores vindos da nossa cultura. Apesar de ser um país laico, a cultura brasileira tem raízes muito fortes no cristianismo. Pelos valores cristãos de solidariedade, de ajuda aos pobres, sentimos que é nossa obrigação ajudar os necessitados. Temos pena e logo pensamos em tirar algumas moedas do bolso. De repente, outros pensamentos começam a impedir que façamos a caridade naquele momento. Ao sentirmos aquela dorzinha no coração, e o medo de sermos punidos e irmos para o inferno, colocamos a mão no bolso e já pensamos: “mas espera aí! Eu preciso desse dinheiro... Trabalhei duro e pago impostos. É dever do Estado cuidar dessas pessoas! Se eu ajudar, estarei simplesmente reforçando que o Estado não faça nada. Além disso, não sei se vão comprar cachaça com esse dinheiro”. Hesitamos.

É aí que o dilema se instaura: se damos esmola, temos a idéia de que estamos alimentando a indiferença do Estado, resolvendo o problema somente superficialmente. Se não damos, não estamos sendo solidários e, além disso, a necessidade dessas pessoas é imediata. A mãe solteira na frente do nosso portão não pode esperar pelo nosso protesto. Por mais que briguemos por políticas públicas que atendam esses indivíduos, a necessidade deles se dá no momento presente, agora. Tendo isso em vista, a questão da esmola se torna extremamente complexa. Devemos não dar esmola, no pensamento de que se deve “dar a vara-de-pescar , e não o peixe”, negligenciando a necessidade imediata dessas pessoas; ou dar esmola, atendendo essa necessidade, mas correndo-se o risco de reproduzir a indiferença por parte do Estado e criando a dependência dessas pessoas para com a caridade?

Essa mesma questão pode ser transposta para a tão discutida bolsa-família. Até que ponto a bolsa-família é uma política democrática, e até que ponto ela é assistencialismo? Questão complicada. Afinal, como diria Betinho na década de 1990 sobre a Ação de Solidariedade Contra a Fome: “não resolve, mas traz uma nova perspectiva”. A bolsa-família também não resolve o problema social da fome, mas traz uma nova perspectiva. Como podemos cobrar cidadania e participação política de um individuo que passa fome? Nesse sentido, o bolsa-família ajuda imediatamente a dar o impulso que essas pessoas precisam para serem reconhecidas como sujeitos, como cidadãs. Mesmo assim, o bolsa-família corre o risco de criar uma relação de dependência caso novas políticas públicas não sejam criadas para resolver o problema. Não compartilho da opinião de que o bolsa-família instigue a “vagabundagem”. Garanto que muitas famílias preferiam trabalhar para ganhar um salário mínimo do que “não fazer nada” e ganhar duzentos reais. Essa quantia não enche a barriga de ninguém.

Pode-se dizer então que somente a história poderá dizer se o bolsa-família é assistencialismo ou não. Tudo depende de, após esses indivíduos necessitados terem recebido a bolsa para no mínimo serem reconhecidos, que a própria bolsa-família e novas políticas sejam criadas, repensadas, renovadas e implementadas daqui pra frente.

Portando, dar esmola ou não? Bolsa-família ou não? Essas são questões que não pretendo responder aqui, mas pretendo desbanaliza-las para que possamos refletir sobre elas. Vale lembrar que não só o Estado tem responsabilidade para com as classes subalternas, mas a sociedade como um todo tem. Essa é a noção de cidadania. Noção que é um ponta-pé inicial para respondermos tudo isso...